quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Chuva da Madrugada de Quinta-Feira


Saí na chuva pra lavar minh'alma.
Deitei ao chão para ouvir o céu gotejar.
Levei no rosto um beijo gelado, estalado...
pra me despertar.
Abri os olhos para olhar a escuridão imensa, serena...
e saber não estar sozinho ali.
Subi ao céu num sono profundo,
e agora me fundo nesse enredo seco,
pra contar como que aos becos
os segredos molhados da encantadora escuridão.

domingo, 23 de maio de 2010

O pastor amoroso


I
"Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado."

II
"Está alta no céu a lua e é primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos,
E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores,
Isso será uma alegria e uma novidade para mim."

III
"Agora que sinto amor
Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver."

IV
"Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações,
Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Quem ama é diferente de quem é.
É a mesma pessoa sem ninguém."

V
"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio."

VI
"Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar ela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar."

VII
"[...]
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio."

Fernando Pessoa
Alberto Caeiro

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Loucura?


Não, isto não existe.

Cada dia mais, fico impressionado com os "loucos" condenados por nossa sociedade. Os únicos que não participaram dessa loucura coletiva, que é a vida quadrada e sem pensamento (quando digo pensar, digo pensar de fato; não o pensar que achamos que é o pensar. Porque o verdadeiro pensar, ainda não conhecemos), que nós vivemos. Somos soldados de leis que não criamos, serventes de pessoas que não concordamos... não contestamos; apenas colocamos nossos cabrestos, e seguimos em frente, sem saber o por quê.

-Somos caretas!
Sim, somos muito!

Não temos capacidade para nos doar em nada; não aceitamos o diferente, nem nos esforçamos para tentar encontrar sentido em novas idéias.
-"Não, ele é louco!" É muito mais fácil negar e tirar de lado, excluir, exilar, aquilo que não temos capacidade para entender.
Mas faço questão de tirar meu cabresto, e olhar todo meu redor. Sentir o novo com todos meu sentidos. Provar o sabor da morte; ouvir o grito da revolta; ler as palavras da vida; sentir o odor de outros mundos; tatear os objetos de outras culturas... em fim: renascer.
E aos "loucos", a gratidão e meu mais profundo reconhecimento. Espero desfrutar de todas suas lições, e me rechear de todos seus ideais.

Tirei meu corpo da decomposição e não morrerei jamais!

segunda-feira, 1 de março de 2010

Triste mundo



Brecht, em seu diário:

“Aterrador ler poemas de Shelley (para não falar de antigas canções camponesas egípcias de 3.000 anos atrás) em que ele lamenta a opressão e a exploração. Será assim que vão nos ler, ainda orpimidos e explorados, e perguntar: já era tão ruim assim?”


Maravilhoso é o homem, que com o passar do tempo, aprende novas formas de piorar!

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Á amiga


O garçom desce mais uma,
Já nem sei o que brindar

O mundo gira, ela maestra,
E a gaita tenta até tocar

Como duas tolas e desvairadas,
Andamos juntas sem saber

Se voltaremos, nos perderemos
Ou beberemos o amanhecer.


Melhores palavras:

"Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica..."

Vinícius de Moraes